Revista Pardo

Sempre foi assim e sempre será

Não me recordo do tempo em que acordei pra vida, do dia em que deixei o mundo da abstração infantil e parti em busca do mundo real. É bem possível que esse despertar tenha se iniciado pela descoberta da inexistência de Papai Noel.

De qualquer forma, recordo-me de uma infância feliz numa cozinha simples, iluminada por fartos raios solares.

Na música “In my life”, Lennon e McCartney nos dizem que há lugares que não esquecemos jamais. Já em “Triste berrante”, uma canção lindíssima de nosso folclore caipira, há o relato de um tempo que deixou saudades, muitas saudades.

“Já vai bem longe este tempo eu bem sei, tão longe que até penso que eu sonhei”.

Um tempo que passava lento, na mesma velocidade das comitivas de bois. Até por conta dessa lentidão, um tempo em que a beleza e a inocência eram explícitas, escancaradas. Parece que sobrava tempo para admirá-las.

Recordo-me de muitas coisas: peladas no campo do “pastim” dos Titarelli e embates memoráveis com o time do Tiãozinho Fonseca. Recordo-me de cada árvore do sítio de meus avós, principalmente das jabuticabeiras, dos jatobazeiros, das goiabeiras, das mangueiras e das jaqueiras.

Escalei todas para coletar frutos, mas também para estudar e curtir. Decorei as capitais do Brasil empoleirado sobre as mangueiras, as tabuadas sobre as jaqueiras, as poesias de Olavo Bilac sobre as goiabeiras, as canções dos Beatles sobre os jatobazeiros. Já as libidinagens aconteciam sempre sobre as jabuticabeiras. Em todas cravei marcas no caule.

“Ali, tinha uma palmeira na beira da estrada onde foi cravado muito coração”.

Até recentemente busquei alguma lembrança, algum coração cravado em árvores pelos quintais de Santa Rosa. Não encontrei nem mais as próprias árvores frutíferas.

“Mas sempre foi assim e sempre será. O novo vem e o velho tem que parar”.

Guardo muitas recordações boas. Recordo-me das noites de pescarias de tilápia na represa Santa Constância junto com o Eliú Romeiro, antes dela se tornar depósito de esgoto. Recordo-me do dia em que ouvi pela primeira vez “In my life”, música que me marcou muito.

Recordo-me da incrível apresentação da nossa fanfarra do Conde em São Simão, por ocasião do aniversário da cidade, um sábado do dia 28 de outubro de 1967.

Recordo-me de meu pífio desempenho como clarinetista na Banda “Furiosa” comandada pelo perseverante maestro Izoldino Souto Maior.

Recordo-me das deliciosas rodas de cantoria no bar do Zé Mussolin. Recordo-me de quando conseguimos assumir a gestão do Grêmio Recreativo e do sucesso com os bailes abrilhantados por bandas famosas como 3 do Rio e Modern Tropical Quintet.

Recordo-me de muitos lugares que jamais esquecerei. Acalento essas boas lembranças, mesmo que nem haja mais indícios dos lugares.

“O progresso cobriu a poeira da estrada e esse tudo que é meu nada tenho hoje que acatar e lembrar. Já vai bem longe esse tempo bem sei, tão longe que até penso que eu sonhei”

O que é o tempo afinal?

Hoje ainda tenho meu lugar nele, mas agora é mais o tempo de meus filhos e netos construírem suas lembranças. Eles que terão, como eu tive, suas boas recordações dos lugares e dos acontecimentos que não esquecerão jamais.

Lilian Queiroz

Lilian Queiroz

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