Revista Pardo

Fogão de lenha

Meus avós italianos residiram e morreram num casarão que até há pouco tempo existia na Av. Rio Branco, 483, em Santa Rosa de Viterbo. Nele, havia um fogão de lenha bem no centro da cozinha. Enorme, ele tinha o lado da chaminé grudado na parede e lado oposto, o robusto rabo, voltado para o centro.

Pra mim, era um monumento, uma instituição. A qualquer hora do dia ou da noite havia comida e café quente para os que chegassem do trabalho, ou para os que saíssem pro trabalho. Minha avó, tal qual a deusa romana Vesta, era a mantenedora da instituição. Quase não era vista, mas o fogo não apagava, mantinha a família funcionando, acesa.

“Vesta: deusa romana do fogo sagrado, da pira doméstica. Corresponde a deusa grega Hestia”

Certamente não se desejava a longa permanência de eventuais visitantes, por isso a sala era pequena. Dormia-se cedo e havia muito trabalho na lavoura de café, na linha de coleta do leite, no retiro de leite, no pomar, nas roças de milho e arroz, no criame de porco, na máquina de arroz.

Na cozinha havia uma mesa descomunal. Era surrada, mas aconchegante. Assuntos importantes e recepções a amigos chegados aconteciam sempre no entorno do fogão de lenha. Ali aconteciam as discussões importantes e, normalmente, quem sentava no rabo do fogão ganhava a contenda. No jogo de truco, na prevalência do conhecimento agrícola, nas discussões sobre e com Deus.

Havia também o enorme guarda-comidas. Nele, estava sempre protegida a erba cotto (almeirão cozido). Como era bom um pedaço de pão caseiro entremeado com erba cotto crespado em banha e temperado com alho e torresmo.

Num canto da cozinha havia, enfileirados, três barris de madeira enormes, cada um com o cabo da colher de pau pra fora da tampa. Tao grandes que, mesmo sobre a ponta dos meus pés de dez anos, mal conseguia enxergar o interior. O lance era visitar o barril vez em quando em busca de nacos de pernil. A visita era sempre surreal.

Recordo-me de uma ou outra noite em que se jogava truco na mesa surrada. Falava-se muito alto, cantava-se de tarantela pra lá. O fogão de lenha, nessas ocasiões, fazia borbulhar as galinhadas com polenta. Assim, em alguns poucos momentos na casa de meus nonos, a felicidade prevalecia. Trabalhava-se muito, divertia-se pouco.

Não me lembro de nenhum carinho explícito de meu avô, ou de minha avó, dispensado a qualquer neto que fosse. Tempos outros. Guardo de minha avó a lembrança de olhos negros, duros e de meu avô o olhar triste e brincalhão. Na morte, os acontecimentos foram estranhos. A nona era 12 anos mais nova e morreu primeiro, aos 71 anos.

– Bença Vó!

 

O nono entristeceu-se de tal forma que chegou a desaparecer pela cidade, saiu para fazer seu luto. Num domingo à noite, alguns anos depois, encontrei-o sentado no rabo do fogão. Havia apenas um parco lume saído do fogão de lenha, suficiente para perceber espasmos de seu corpo. Vi também gotas de lágrimas rubras. Elas escorriam irregulares e transversais pelos sulcos em sua face.

Acomodei meu corpo, então com 23 anos, num lado do enorme rabo do fogão. Recolhi uma das pernas para apoiar meu rosto e contemplei a cena em silêncio.

Não sabia o que dizer na época, não saberia hoje. A quietude era aconchegante, mas intrigante.

De repente ele se levantou e, como se despedisse, murmurou resignado:

– Eco non.

Não consegui responder. Faustino caminhou com os movimentos alquebrados pela idade e pela dor de tantas perdas. Três dias depois, amanheceu morto em sua própria cama.

– Bença Vô.

Edgar Esteves

Edgar Esteves

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