“… a ausência é um estar em mim…. essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.” – Drummond
Ligar para familiares, principalmente os pais, no dia da passagem de um ano para outro, é tradicional, reconforta. A última passagem estava muito gostosa, apesar da pandemia. Estava em casa toda a família, inclusive os netos. Após os cumprimentos, algumas pessoas puxaram seus celulares e buscaram a quentura de sua origem, de sua essência.
Já um tanto alcoolizado e saudoso, afastei-me para melhor observar os acontecimentos. A emoção tornou-me, autômato. Liguei para meus pais. Necessitava compartilhar sucessos e pedir ajuda pelos muitos fracassos. Como é gostoso ouvir a voz do pai e da mãe quando se está carente. Comigo, a incomoda sensação de filho ausente, por ter saído da casa deles tão cedo. Por não conseguir demonstrar toda importância que eles exerceram em minha vida.
No ato de discar sabia que praticava algo estranho, mas a magia do momento deixou-me meio inocente, crente. Lembrei-me do número do telefone como se hoje fosse há 20 anos e liguei: 654-1595. Quem sabe não acontece alguma surpresa, algum resíduo da magia do réveillon? Se alguém atende, digo o que tenho para dizer. O que está contido, engasgado. Preciso agradecer e dizer tudo que nunca disse. (“. . .quem quer dizer o que sente, não sabe o que há de dizer, fala: parece que mente…cala: parece esquecer…”– Fernando Pessoa) . Para meu espanto, alguém atendeu e era a voz de meu velho pai. É magia!!! Gritei. Meu filho ouviu e me perguntou se estava tudo bem. Solucei que sim, principalmente porque, ao fundo, ouvi uma outra voz
– Quem é Mário, é o Dai?
Oh!!! voz maravilhosa de minha mãe sem as sequelas da isquemia. A mesma voz que um dia me perguntou o que eu achava de seu desempenho como mãe. Não quis perder tempo e embargado iniciei meu discurso como se do outro lado estivessem no modo viva voz de um celular:
– Oi pai, oi mãe, tudo bem? Então… liguei para desejar feliz 2022 e falar alguns assuntos… Começo pedindo desculpas por me ausentar em tantos natais e réveillons. Sei que as justificativas são inconsistentes, mas eu era jovem e jovem, vocês sabem, é egoísta. Ah! Pai, entendo quando pediu pra mamãe devolver a coleção das obras de Jorge Amado sob o argumento de que não era leitura saudável para crianças. Agradeço, você me instigou e acabei lendo na biblioteca. Grande jogada a sua para criar em mim o interesse pela leitura.
Ah!! pai, mãe, quero lhes dizer que hoje compreendo o que vocês sentiram quando saí de casa. Agora sei como o ninho vazio é dolorido. Mãe, a próxima vez que for pra Santa Rosa pergunto mais sobre sua família italiana. Desculpa, não dei a devida atenção. Gostaria até que você recitasse aquelas cartas no idioma italiano novamente. Mãe, sabe aqueles trocados que você me dava escondido do papai? Foi muito importante, não pelo valor monetário somente, mas também porque, junto com os trocados, vinha um sorriso maroto de alegria. É esse sorriso que não me deixa esquecer de seu semblante.
Tenho muito pra dizer, mas me perco na poeira do tempo. Outro dia disse para mim mesmo, preciso anotar o que tenho para falar com meus pais, senão esqueço. Ah! lembrei: A vida foi boa? Vocês foram felizes? Valeu a pena?
Despertei da catarse, do outro lado da linha alguém disse:
– Olha cara, parabéns pelas palavras. Gostei muito, mas com certeza você discou número errado.
Sarei da bebedeira. Minha filha perguntou:
– Pai, com quem você falava ao telefone?
Não se explica o inexplicável apenas com palavras, então sorri. Não é sempre que se fala com os pais que já não estão mais no plano terrestre.