Revista Pardo

Quero ver acampar comigo – PARTE 3

…Vivíamos o período de inverno e, na beira do rio, à noite, o frio ficava quase insuportável. Resolvemos acender uma fogueira na porta da barraca pra aquecer o interior. Nada do que se fez, no entanto, foi suficiente para amenizar o frio. Pior, a fumaça dentro da barraca atrapalhava o sono. O mundo judia, mas também ensina. No final das contas a solução, mesmo que paliativa, foi todos dormirem o mais juntos possível. Dia amanhecido, preguiça, cada um procurou os afazeres de sua preferência.

 

“O Olégario fazendo café, medindo pó com uma colher”

 

Num único quadro, emoldurado pela beleza do lugar, vi Babá dormindo, Romeu no violão, Cheda no lampião, Tigrão e Rolis combinando caçadas, Tico a construir mesas, Celso recolhendo lenha e Olemário na pescaria. A comida era escassa. Não tínhamos gelo e, portanto, a disponibilidade de proteínas era pequena. Caçar e pescar era a esperança e ficou só na esperança. Incrível, a gente não ingeria álcool na época. Lógico que havia uma ou duas garrafas de pinga, mas só os mais destemidos se aventuravam.

 

“Quero ver o sol nascer do outro lado do rio pardo. Quero sentir o amanhecer, o que é bom é ver o sol nascer. Daí a pouco Tigrão vai caçar, Celso na lenha, Olegário a pescá. Romeu no copo, Zen a cozinhar, o Babá dormindo e o Rolingstone a cantá”.

 

Durante o período do acampamento, recebemos algumas visitas interessantes. Certo dia, apareceu por lá o Luiz Tertuliano com seu inexorável cigarro de palha num canto da boca e a boa conversa de pé de fogo. Como ele gostava de dizer:

“um cafezim, um cigarrim, uma cuspidinha de lado e prosa mansa. Isso que é bom”.

Luiz nos trouxe um enorme teiú abatido. O bicho despelado mostrou sua carne branca e cozido, transformou-se numa inesquecível iguaria. Outra visita interessante foi a de nosso estudante de geologia Paulo de Tarso, irmão do Luiz Tertuliano. Certo dia, estávamos alguns de nós fora da mata ciliar e vimos que, do alto, aproximava-se uma pessoa fazendo movimentos descendentes com a mão.

Quando ele chegou perto, descobrimos ser o Paulo segurando uma cobra pela cauda. A serpente tentava se erguer e Paulo, imitando o uso de um relho, fazia o movimento pra baixo. Aproximou-se e, com muita calma e aquele seu jeito peculiar de conversar, iniciou um diálogo sobre o perigo das serpentes quando se enrolam. Falava e movimentava o braço para impedir que o animal lhe picasse. Depois de soltar a cobra, visitou nosso acampamento, proseou um tanto pequeno de conversa, expressou um bom tanto de interjeição e gestos e despediu-se.

 

“E no escuro o Cheda a gritar, o lampião não quer funcionar”

À noite, no entorno da fogueira, havia muita conversa gostosa sobre a escola, os professores, as autoridades, as meninas, mas também sobre política. Éramos todos críticos da ditadura que, na época, dominava o cenário político no Brasil. Certa noite, um inspirado Romeu começou a recitar trechos do musical “Arena conta Zumbi”, escrito por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, com música de Edu Lobo. A fogueira no centro, a escuridão por trás e as sombras de além faziam cenário perfeito para o evento. Violão em punho, Romeu recitou trechos do musical aos brados. Até hoje aquelas palavras ricocheteiam em minha memória:

– “Ganga Zumba!!!…, Ganga Zumba!!!…., Ganga Zumba!!!…”

 

Ao fundo, as batidas no violão contrastando com o silêncio total, davam credibilidade a narrativa:

 

“…mataram Ganga Zumba. Logo agora que a gente estava no mais calado, no melhor viver da vida…mataram Ganga Zumba”.

 

Agradeço sempre por aquele tempo em que todos tínhamos o mesmo posicionamento político e social. Éramos todos contra a ditadura e o racismo. Escola foi boa mestra, nos deu lição verdadeira.

 

“O Broca enchendo o saco do cozinheiro, o Dãozinho (Agapito), nosso piloteiro. Tico fazendo mesa no terreiro, o Panchito o mais enguiceiro. Pra completar, ô vamos lá, o Henrique nosso sanfoneiro”

 

Não me lembro de desentendimentos no grupo. A vida correu livre, leve e solta durante todo o tempo em que estivemos no acampamento. Na sexta feira ficamos sabendo de visitas emocionantes. A ansiedade pairou no ar…

Continua…

Imagem destaque: Edson Bianchini (Cheda). Arquivo pessoal.

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Parte 2

Edgar Esteves

Edgar Esteves

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